Editora: Nova Fronteira
Nota: 8/10
Citação:
Aquilo me fez sorrir. Com que ansiedade eu corria atrás da felicidade, atrás das mulheres, atrás da liberdade... A troco de quê?
Neste momento, tive a impressão de que teria toda a vida pela frente, e pensei: "É tudo uma grande mentira".
...a morte, porém, roubara o encanto de tudo.
Considerações sobre a obra
Em O Muro, Sartre explora, com uma profundidade angustiante, a desconstrução dos sistemas de crenças e a fragilidade da psique humana sob extrema pressão. A obra retrata como o protagonista, um prisioneiro à espera do julgamento/execução, passa por um processo de despersonalização tão intenso que começa a enxergar a vida com uma ironia amarga e desconcertante. A narrativa culmina em uma reflexão crua e cética sobre o acaso e a transitoriedade da vida.
Durante a crise existencial e de pânico que atravessa, o protagonista se depara com a insignificância dos acontecimentos ao seu redor, desde as ações dos guardas até o aparato de opressão ao qual ele e outros presos são submetidos. Ele chega à conclusão de que transmitir informações ou lutar pela vida dele ou de seu companheiro seria um esforço inútil. A morte é inevitável e atinge a todos, incluindo os próprios guardas; a diferença está apenas no tempo que cada um ainda possui. Ele passa a ver a vida e as convenções que a sustentam — os papéis, as hierarquias e as obrigações — como algo absurdo e sem sentido.
Essa percepção culmina em uma compreensão niilista, um “abraçar do abismo” em que o protagonista encontra uma desconexão profunda da realidade. Ele passa a enxergar o que o cerca sob uma perspectiva racional e fria, o que o conduz a uma postura quase cômica diante da brutalidade da morte presente ao seu redor. Quando racionalizadas, as ações que antes carregavam peso emocional perdem seu impacto, revelando a futilidade da luta, da sobrevivência e dos valores que antes o prendiam ao mundo. Até mesmo o armário que ele era preso apenas se tornava um lugar "quentinho e melhor que a prisão de antes".
No ápice desse estado de racionalização extrema e de niilismo, o protagonista já não atribui valor à vida, à própria existência ou à crueldade que o cerca. A pressão psicológica e a iminência da morte o levam a um ponto em que ele rompe completamente com os sistemas de significado que sustentavam suas crenças e expectativas. O vazio que resta é, paradoxalmente, libertador e assustador. Sartre nos oferece, assim, uma reflexão profunda e provocativa sobre a natureza do existir e da consciência humana diante do nada, onde toda ação parece perder o sentido.
Devo concluir dizendo que é uma boa leitura, uma leitura que me lembra "O estrangeiro" de Camus - por mais que a perspectiva seja diferente. É uma leitura que requer atenção e análise, a qual, caso seja feita sem foco, pode aparentar uma falta de coerência e/ou sentido. É um conto interessente que recomento a leitura para aqueles interessados em tais questões.
Contextualização - Resumo
O conto inicia-se com três personagens sendo julgados: o personagem principal, que faz parte do movimento anarquista; um homem gordo e forte, também envolvido em movimentos revolucionários; e o irmão de um anarquista que, ao que tudo indica, não havia feito nada.
O personagem principal é questionado sobre a localização de um aliado, ao que responde que não sabe. Após perguntarem os nomes dos três, eles são levados para uma cela, onde discutem o que acabaram de presenciar e se aquilo fora um julgamento ou algo diferente. Todos chegam à conclusão de que se tratou de um julgamento.
Um guarda chega e afirma que os três foram considerados culpados e sentenciados à morte por fuzilamento no dia seguinte. O irmão do anarquista se desespera, afirmando que não quer morrer; o homem gordo faz exercícios por conta do frio, tentando aquecer-se; já o personagem principal permanece sentado em um canto, evitando qualquer tipo de contato. Após algum tempo, surge um médico belga para acompanhá-los nesses momentos finais.
O personagem principal sente aversão pelo médico, percebendo a diferença entre ele e os três prisioneiros. O médico estava vivo, enquanto eles já se consideravam mortos. Durante esse período, ele reflete intensamente sobre a falsidade de tudo ao seu redor: a felicidade que sentira, o movimento anarquista do qual participava; nada disso importava. Diante da própria morte, percebe a insignificância da vida. Enquanto isso, o irmão do anarquista urina nas calças, tomado pelo desespero.
O personagem principal não consegue dormir, e, quando o jovem finalmente adormece, o médico belga verifica seu pulso para se certificar de que ainda está vivo, o que deixa o personagem principal extremamente irritado. Ele pensa que, se o médico tentasse fazer isso com ele, o socaria no rosto.
À medida que a noite avança, ele sua intensamente, mesmo com as roupas leves que veste, sem distinguir se a umidade em suas calças é de suor ou de urina.
No dia seguinte, o guarda desce para chamá-los para o fuzilamento, mas leva apenas o gordo e o jovem, deixando o personagem principal para trás, perdido em pensamentos. Nesse momento, ele já aceita plenamente o fato de que sua vida está chegando ao fim, não de forma carregada de medo e raiva, mas com uma neutralidade que torna tudo insignificante.
Ele é então levado a uma sala com dois oficiais, que perguntam novamente sobre o paradeiro de seu companheiro de movimento. O prisioneiro responde que não sabe, e, mesmo que soubesse, não valeria a pena revelar, pois sua vida — ou a de seu companheiro — não tinham valor. Ele já não se importava com a morte, nem com a morte de seu companheiro; afinal, os guardas também iriam morrer, apenas demorariam um pouco mais, assim como seu companheiro. Viver por papéis ou movimentos era ridículo, pois nada disso tinha a menor importância. Viver era ridículo, já que a vida não tinha a menor importância.
Os guardas tentam intimidá-lo, mas em vão. Ele percebe que cada movimento, cada ação, buscava esse objetivo de intimidá-lo, mas, por não valorizar a vida, tudo aquilo beirava o ridículo, e ele segurava o riso.
Os guardas o trancam em um armário, em uma nova tentativa de intimidação, mas, mais uma vez, ele percebe a situação como cômica e pensa que, pelo menos, o armário era quentinho, diferente da cela fria onde passara a madrugada.
Após uma hora, dois oficiais vêm buscá-lo, e ele faz comentários sarcásticos sobre um rato que havia visto e o bigode de um dos guardas. Leva um pontapé e precisa segurar o riso.
De volta à sala, ele é questionado novamente sobre o paradeiro de seu aliado. Desta vez, responde que seu aliado estava no cemitério e sugere que os guardas cavem algumas covas para encontrá-lo. Na realidade, ele sabia que o aliado estava escondido na casa de um primo, mas falou sobre o cemitério para fazê-los perder tempo. Depois que os guardas saem, ele passa meia hora sozinho, imaginando-os escavando o cemitério em vão. Então, um dos oficiais, o mais baixo, retorna. Ele quase ri, pensando que o outro guarda ainda estaria cavando buracos e desperdiçando tempo.
Contrariando suas expectativas, o oficial informa que ele será julgado por uma corte normal e que deve se dirigir ao pátio. Quando pergunta o motivo dessa decisão, o guarda não responde.
No pátio, após algum tempo, ele encontra um conhecido, o padeiro. Em conversa, descobre que o padeiro foi preso simplesmente por discordar do governo fascista e que também prenderam um de seus colegas. Explicam que esse colega brigou com o primo e decidiu esconder-se justamente no cemitério, o mesmo para onde o personagem principal enviara os guardas. Ao ouvir isso, ele começa a gargalhar, rindo até cair no chão.